sábado, 1 de agosto de 2009

A doçura secreta do antagonista

O antagonista entra no boteco de esquina mais longe de casa possível. Olha para os lados, escolhe a mesa perto do banheiro. Automaticamente estende a mão para o paliteiro e tira de lá um palito de dentes com só uma das pontas afiadas. Grita ao dono do bar uma marca de cerveja ruim, daquelas que mesmo gelada tem gosto de cerveja choca. Quando a cerveja chega, enrolada num isopor com manchas de mofo, o antagonista resmunga um tiragosto. Diz que quer caldo de mocotó. O caldo não tem mocotó, é claro, mas em compensação ele possui tudo o que já passou pela cozinha. Toda uma família de formigas e suspeitas perninhas que dão uma crocância toda especial. Por cima, uma compacta e grossa camada de gordura, boiando no caldo frio. O antagonista tenta desgrudar o sal do fundo do saleiro, mas este se recusa a soltar, desiste e toma o caldo insosso. Estala os lábios com a cerveja. Entra uma mulher que vende panos de prato e, numa cantilena, diz que é para sustentar os quatro filhos pequenos e o marido que a nove anos sofreu um acidente no serviço e ficou paralisado da cintura para baixo. O antagonista faz pouco caso das verdadeiras rugas de desgaste e fome da mulher e pergunta o que o marido dela acha do fato de ter filhos pequenos quando ele está há nove anos sem poder mexer nada da cintura para baixo. Ela se surpreende e sai do bar gritando maldições ao antagonista que ri. Começa a ver as mocinhas que saem da academia, apertadas em calças de malha branca. Quando elas passam se rebolando e suando próximas a uma das portas do bar de esquina, o antagonista assovia um elogio de pouca classe, mas muito correto, porque elas gostam e acenam com suas toalhinhas. Ele ainda faz mais um comentário tipicamente cafajeste as sombras na calçada antes de olhar para o relógio “madeintaiwan” e suspirar dizendo que já estava atrasado para a bóia em casa, “senão a mulher fica reclamando e perguntando onde o vivente anda, e aí já viu, é só o pé que ela queria para abrir o bocão e a gente fica mais sujo que pau de galinheiro”. Tirou, com um fungado, do fundo do bolso da frente umas notas sujas e amassadas. Reclamou do preço do cerveja, “que esta droga só faz subir, daqui a pouco tem que beber água da torneira e achando bom”, e disse que o caldinho tava uma delícia. Quis o troco num cigarro, recebeu um falsificado, e enrolou a língua para dizer o nome estrangeiro da marca. Concluiu que era coisa fina e saiu saboreando seu cigarro como se fosse um charuto cubano legítimo. Parou baforando seu cigarro na porta do bar e olhou para trás se despedindo temporariamente, na próxima sexta estaria de volta. Sai descendo a rua, equilibrando o cigarro no mesmo lugar onde o palito de dente ficou pendurando antes. Olhou para trás mais uma vez, se despedindo do bairro que começou como conjunto habitacional. Cospe o cigarro fora e pega um ônibus para o centro da cidade. Desce depois de vinte minutos e se encaminha para um bom carro prata, que custou uma boa quantia de dinheiro, e sente automaticamente o peso da responsabilidade se enganchar em seus ombros. Entra no carro e volta para o confortável e muito caro apartamento quatro quartos sendo três suítes, antes que a esposa, com o adorável casal de filhos, chegue do curso de inglês. Entra em casa como um arrombador e sobe diretamente para o quarto do casal decorado por um brilhante decorador com enorme sucesso na Europa. Tira as suas roupas de operário e as joga dentro do cofre escondido do closet. Toma um banho e coloca uma camiseta básica de grife e calça jeans com lavagem desbotada que custou um salário mínino. Desce para a sala no momento em que a mulher balançando os cabelos recém saídos de um importado método de rejuvenescimento capilar. Ele a abraça e começa a cena inicial da novela onde é o protagonista.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Love me tender

"Love me tender

Love me sweet

Never let me go

You have made

My life complete

And I love you so"

Seu amor não estava mais lá para me proteger. Acontecesse o que acontecesse, eu sabia, seu amor estava lá. Forte e imutável. Me fazendo seguir meu caminho, forte e imutável. Agora, sem seu amor, eu teria que ser forte por mim mesma. Então eu tive que crescer e desse crescimento eu me transformei numa mulher. De todas as coisas boas que você fez por mim, deixar de me amar foi a que mais me fez bem. Agora sou livre para errar, para me insubordinar, para transformar radicalmente meus conceitos. Não ser mais amada me liberta para ser uma pessoa pior. E sendo essa pessoa que você não gostaria que eu fosse, eu cresço e me fortaleço. Vou errar, vou sofrer, vou crescer, e quando eu estiver pronta, sei que você vai me amar outra vez.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Na areia branca existem piolas

- Para onde?
- Para a praia.


Amanhece no Centro Histórico. Decido ver esse sol terminar de nascer na praia. Tiro minhas plataformas douradas. Termino de soltar meu cabelo duro de laquê. Limpo o resto de maquiagem que ainda tenho no rosto. O cansaço e o delineador preto aumentam minha cara de cansaço, de velhice, de doença. Estou doente. Desço do táxi. Na praia só a galera “saúde”. Caminhando, correndo, se alongando, enfiados em cotons se exercitando de cinco da matina. Quando voltarem para casa vão tomar iogurte com fibras e ricota fresca, aposto que vão. Assim que eu vir mais esse dia amanhecer voltarei para minha casa e tomarei um café, vou comer um resto de arroz frio e dormir até as cinco da tarde. Sento na areia, um cheirinho de frio, de mar, de sal. O mar tem esse cheiro de manhã cedo, sal frio. Quanta saúde, quanta vitalidade, quanta coisa que eu não sou. Me senti subitamente deslocada, eu era uma mancha na areia branca da praia da “geração-saúde”. Fedendo a cigarro, a bebida, a perfume, a suor, a insônia. Quer saber? Deito na areia e ela cola no meu laquê poderoso. Tiro um cigarro e fico esperando a merda do amanhecer terminar. Quando o apago na areia fico com remorso. A praia parece tão pura esta manhã! Desencavo o toco de cigarro, mas percebo que não é a marca do meu cigarro, era outro toco enfiado na areia. Percebo as garrafas, os saquinhos de pipoca, as tampinhas, os cocos, as camisinhas. Olho para a galera da malhação na calçadinha, era como se eu soubesse um segredo deles. Volto a me deitar na areia, me sentindo em casa, e apago todos os meus tocos de cigarro na areia. A praia está suja. Eu também.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Eu queria dias de sol, mas veio a chuva e eu gostei

- Isso é chuva?

- Não, é o vento nos coqueiros.

- Ainda bem, já imaginou se fosse chuva? Como eu ia voltar para casa?

- Ah, você ficava por aqui mesmo... Até a chuva passar...

- Eu poderia?

- Claro!Você sabe que poderia ficar.

- Pena.

- Por quê?

- Queria que estivesse chovendo.


E então choveu a tarde toda, lavando certezas.
E então eu já não sabia se era chuva ou só o vento dos coqueiros.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Eu sou meu próprio Zidler

Amanheceu, meus olhos estavam inchados, mas eu não me importei. Tomei banho, me maquiei, me perfumei, me vesti. Usei meu batom mais vermelho.
- The show must go on.
Sorri para a minha imagem cansada no espelho. Não chorei por você, chorava por mim e mais uma constatação da minha vida. A mesma coisa, sempre a mesma resposta, chorei por causa da rotina. Senti como se eu jamais fosse um destino, um porto. Eles vêm, sugam minha alegria, meu calor, usam meu corpo e partem. Partem procurando seu destino. Sou uma passagem. Deixam-me para trás, eu que me reconstrua sozinha. Não tenha mais tristeza para dizer isso. Só resignação. Talvez eu não tenha sido feita para ser amada. Talvez eu tivesse que ser feliz assim, refazendo os corações dos pobres amantes e deixando-os partir.
- The show must go on.
Então vou me pintando, sorrindo, vendo mais um dia chegando. Mais um dia. Minha maquiagem pode estar borrada, mas meu sorriso ainda é o mesmo. Não era assim? Me olho pela última vez no espelho. Estou cansada, mas esse novo dia é uma nova promessa. Novas promessas não cumpridas. Novas pessoas que tentarão me iludir. Triste constatação, amantes presos na idéia fixa de romance, mesmo onde não há. Hollywood fez um grande estrago nessas cabecinhas jovens. Não me dou tempo para sofrer, refaço egos e reconstruo ilusões. Por que não poderia fazer isso a mim mesma? Eu sei que sou boa nisso.
- The show must go on.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Sempre terei Solânea

Descobri que a menina que eu fui um dia ainda vive. E quem sabe viverá eternamente. Agora você pode se perguntar: onde? Em qual dimensão este fato milagroso ocorre? Terei muito prazer em dizer: “Não se trata de outra dimensão, isto ocorre em Solânea, cidade de meus avós e onde minha mãe cresceu.”Lá eu me transformo na menina que nunca morreu. Na menina que lá passava as férias, que mexia nas agulhas do avô (que é alfaiate) tentando costurar (o que não sabe fazer até hoje!), que fazia de um quintal um reino, que sempre encontrava florestas encantadas em simples plantações de milho, que era o que queria ser sem se preocupar com nada. Só agora vejo o que meus olhos adultos não enxergavam. Aquela menina ainda estava lá, esperando a mulher que se tornaria, para ajudá-la a lembrar-se que a vida nunca é aquilo que pensamos, pois as mudanças ocorrem sempre. Lembra dos sonhos esquecidos, dos medos, superados ou não, de tudo o que foi tão bonito, tão simples. Palavras não descreveriam o que senti quando a vi pela primeira vez.Ela estava costurando na máquina do avô, costurando mais os dedos do que o pano, mas achava que quando crescesse costuraria um vestido de princesa. Alinhavado com ouro e prata, como o da moça da história da Moura-Torta.Também revi com os olhos dela o meu avô. Meu avô mágico, bravo, com tantas aventuras pelo “mundão afora”, e todo o sentimento de orgulho voltou. Acrescentou-se o orgulho dos bisavôs revolucionários que morreram pelo que acreditavam.Vi a minha menina e acreditei que eu poderia fazer melhor, não por mim, mas por ela, que onde quer que esteja está esperando o dia que conseguirá costurar seu vestido de ouro e prata.


(Texto antigo, na época eu tinha 17, o que me faz pensar: SOU UMA VELHA!)