segunda-feira, 15 de julho de 2013

Uma visita incoveniente

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Era noite de São João. Ele estava determinado a passar essa noite de apocalipse o mais confortável possível. A família tinha viajado para curtir as festas no interior e ele resolveu ficar em casa só. Só e longe de todo aquele barulho. Infelizmente o barulho, os fogos, a fumaça e o forró não respeitam quem não gosta da noite de São João. 

Sentou na frente do computador e mesmo tentando ficar alheio a festa que acontecia no meio da rua, não conseguia. Estava tolerando toda essa balbúrdia muito bem quando começaram as bombas. As bombinhas e a molecada da rua a correr e gritar e se comportarem como pequenos seres demoníacos na noite vermelha e enevoada de fumaça. 

Um barulho alto no portão de casa.

- Esses filhos da puta jogaram uma bomba no portão daqui de casa! 

Se ele tivesse conseguido ficar impassível a isso, talvez fosse a encarnação de algum monge transcendental, mas ele não era. Ele foi ao portão, pronto para arrumar briga. Qual não foi sua surpresa quando encontrou um gato encolhido no portão de casa. Devia ter pulado o muro porcamente, fugindo das bombas, da fumaça, das fogueiras, do forró e dos moleques.  Compreendia o gato perfeitamente.

Lá estava aquela bola de pelos, acuado no cantinho da parede com o portão. Ele resolveu colocar o gato para dentro, a empatia acabou se transformando em simpatia.

Chamou o gato e este pareceu ponderar sobre as escolhas que tinha. Uma casa e um cara desconhecido e um monte de moleques que estavam tentando amarrar alguma coisa no rabo dele. O estranho, com certeza.  Entrou ressabiado, sentou no pé do sofá e ficou esperando ver qual era.

- Gato, tá com fome? 
- ... 
- Que que eu dou para você comer?
- ...
- Leite?
- ...
- Leite! E se dê por satisfeito! - gato exigente!

Lá foi ele procurar um pires, uma tampa de margarina, qualquer coisa para dar leite ao gato. Quando voltou para a sala, o gato tinha subido no sofá e estava encolhidinho no canto da almofada. 

- Gato folgado. Tá aqui o leite, ó.

Sua majestade felina desce do sofá farejando o ar, orelhas para trás e começa a beber o leite. O cara se deu por satisfeito com a sua cota de bondade do dia, principalmente num dia em que estava tão puto e voltou para o computador. Estava sentado, discutindo sobre política com uma galera direitista ferrenha quando uma presença se fez sentir. Já tinha até esquecido do gato, por isso se assustou quando olhou para trás e o viu amassando a cama. 

Uma cena de filme de faroeste se desenrola. O gato vê que foi visto e olha para o cara, o cara encara o gato que está paralisado em cima da cama. O gato espera que o cara o ponha para fora, o cara espera que o gato dê o fora da cama dele. Eles ficaram se encarando por uns segundos e o primeiro passo é do gato, que resolve ser abusado e se deita na cama, ostensivamente. 

O cara fica olhando o gato, suspira, desiste.

- Fica aí, vai.

Mas subitamente uma dúvida surge:

- E se o gato tiver pulgas?

Ele pula da cadeira do computador e vem na direção do gato, que deve ter pensado: "Pronto, vai amarrar alguma coisa no meu rabo!" Fez menção de correr, mas o cara conseguiu segurá-lo antes que ele pulasse da cama. 

Está o gato tentado correr, pular, se sacudir, mas aí o cara começa a coçá-lo. 

"Ah, cara, coçadinha é golpe baixo". 

Ele começa a achar engraçado o gato arisco e assustado se desmanchando no braço dele com uma coçadinha. Leva o gato no colo para frente do computador. Fica digitando argumentos com o gato prestando toda a atenção do mundo. De vez em quando o gato achava de bom tom dar sua contribuição no tec tec que o cara estava fazendo no teclado e com a sua luva peluda dava uns tapinhas no teclado também.

Os dois ficam ali, olhando o computador, mui amigos, discutindo política com uma galera direitista ferrenha. Já esquecidos do inferno que estava acontecendo na rua, sem prestar atenção nas bombas, moleques, fumaça e forró. O cara resolve dar um cochilo, já passava das 4h da manhã. Ele se deitou e o gato veio junto. Subiu na cama, se enrolou como uma bolinha e começou a ronronar.

- Gato folgado.

No dia seguinte, nem rastro do gato. Ele ainda procurou embaixo da cama, no sofá, mas nada. Olhou na rua: fogueiras apagadas, papel de bombinha no chão aos montes, nenhum gato. Até hoje o cara acha que foi um sonho. O gato já tem planos de onde passar o carnaval.

sexta-feira, 16 de março de 2012

O dono do gato Rodolfo

- Olha, meu amigo alugou um apê, mas ele ta viajando agora.

-Legal.

- A gente podia dar um pulo lá, to com a chave.

- Legal.

Festa chata. Gente chata. Todos aquelas caras que ela já conhecia, que já dera, que já sabia que eram poços de pura chatice. O cara parou do lado dela. Fez as mesmas perguntas de sempre, ela deu as mesmas respostas de sempre. Haja paciência quando você sai para se divertir. Aceitou dar um pulo na casa do amigo que viajou e o cara tava com a chave. Passaram num supermercado e compraram salgadinhos, camisinhas e um vinho demi-sec. Ela odiava vinho demi-sec.

No carro mais do mesmo, mesmas conversas, mesma falta de jeito e ainda teve a cara de pau de bancar o apaixonado.

-Desde que te vi sabia que você era uma garota especial.

- Hurrum.

- Sabe, acho que a gente tem uma ligação, ou alguma coisa mágica...

- Legal.

Vontade sincera de dizer: “Cara, já aceitei transar com você, não precisa mais me enrolar com papinho de ‘ligação mágica’!”. Enfim chegaram no prediozinho até arrumado, que nem parecia ser o prédio de um abatedouro. Subiram pelo elevador com cara de antiguinho, roda a chave na porta do 203. Escuro, cheiro de guardado. O cara da ‘ligação mágica’ perde uns cinco minutos procurando o interruptor, deixando a ‘garota especial’ em pé no escuro. Rápido, uma coisa passa pelos pés dela. Um grito fino de mulher assustada. Um rato, meu Deus? Que tipo de porco é esse amigo que tem ratos no apartamento? Deve ser um desocupado que nem o ‘ligação’, se preocupando em levar garotas para a cama, sem dúvida! Ia transar num apartamento com ratos! Finalmente a luz, o lerdo achou o interruptor.

O apartamento até que não era tão emporcalhado. Mas afinal tinha ratos! Na verdade, esse rato é...

- É o Rodolfo. É o gato desse meu amigo. Eu to com a chave do apê porquê ele me pediu para colocar comida para ele.

O Rodolfo era o gato com mais cara de Rodolfo do mundo. Ela até pensou que o gato talvez tenha se apresentando para o dono:

- Olá, meu nome é Rodolfo, miau.

Ninguém acertaria tão bem um nome num gato. E ela sabia disso, adorava gatos. Apesar do garanhão da noite dizer que estava com a chave do apê só para colocar comida para o gato, o Rodolfo não parecia muito ‘nutrido’. Chamou o Rodolfo e o pôs no colo. Ele veio tão fácil, gato carente é sinal de muito tempo sem cuidados. Ela teve medo de perguntar por quanto tempo o Rodolfo esteve preso naquele apartamento.

Enquanto o cara colocava o demi-sec na geladeira (ele falava demi-sec de um jeito estranho, ela achou que ele também não deveria gostar de demi-sec, mas teria comprado para poder impressionar ao ficar falando demi-sec, demi-sec).

Ela saiu para explorar o apartamento do dono do gato. O apê era relativamente arrumado. O cara não era nenhum porco, mas também não era nenhum maníaco por limpeza. Uma estante de livros, pôsteres de filmes, algumas fotografias de nu artístico pelas paredes. Um sofá três lugares vermelho, uns carrinhos de coleção numa prateleira reservada, um cacto num vaso. Sem cinzeiros. Foi na cozinha, onde o cara mais apaixonado do Brasil preparava um apetitoso prato de salgadinhos para sua amada. Os copos eram uma bagunça, copo de vidro azul, copo de geléia, algumas canecas, daquelas que a gente compra em viagem. Ela tinha algumas também, quase uma coleção. Ele esteve na Alemanha, em Buenos Aires, em Praga, ou pelo menos teve amigos que estiveram lá.

O dono do Rodolfo parecia um cara legal. Enquanto ela continuava tentando imaginar quem como era o dono do Rodolfo, o amante latino veio agarrando por trás. Ela pulou de susto, o Rodolfo pulou do colo dela de susto.

-Calma, princesa.

- Nera melhor a gente beber o vinho antes?

- Mas vai demorar para ficar gelado, a gente podia ir adiantando.

Se não fosse por uma estranha sensação que deveria ficar por ali mais um pouco, ela perguntaria se acaso ele estava pagando a hora e iria embora. Mas ela queria ficar, então colocou seus dotes artísticos para funcionarem.

- Ai, mas é que eu a-do-ro vinho demi-sec. Queria beber antes.

- Mas a gente vai fazer o que antes?

- Não tem outra coisa para beber? – Ela sabia que homem que mora só sempre tem garrafa de bebida por perto, mesmo se o cara for um santo, tem pelo menos uma garrafa de vinho bento.

- Acho que vi uma garrafa de pinga. Quer?

- Hurrum.

- Quero te ver doidinha, gata.

Mais uma vez ela engoliu uma resposta bem dada. O Rodolfo precisava de ajuda, ela precisava ficar mais tempo no apartamento do dono do Rodolfo.


O apaixonado pegou a garrafa de pinga, pegou dois dos copos descoordenados e colocou uma dose para ele e uma dose dupla para ela. "Ele quer me comer desmaiada, só pode ser. Necrófilo".
Ela começou evocou mais uma vez sua veia artística e começou a interpretar o papel de 'altinha'. Falou um monte de besteirinha, derrubou um pouco da pinga, levava o copo na boca, mas não bebia. O cara pareceu se animar com a situação e começou a beber de verdade. Ela estava conseguindo o que queria, incentivou-o a beber mais apostando com ele. Ele sempre ganhava, ela elogiava como ele era forte para bebida e ele se vangloriava bebendo mais. Bebeu do copo dela e quando a pinga acabou, correu para pegar a famosa garrafa de demi-sec. Ele estava bebâdo chato, mas ela o queria desmaiado mesmo. O fez beber a garrafa de demi-sec quase toda e finalmente (aleluia!) ele apagou.

Ela foi na cozinha, pegou uma bacia e colocou perto da cabeça dele no sofá. Se ele vomitasse, talvez acertasse a bacia e não fosse um estrago tão grande. Depois ela saiu para vasculhar o resto do apartamento. Procurava por uma foto do dono do Rodolfo, um nome, alguma coisa. Mas não tinha nada. Só o Rodolfo, que quando percebeu que ela estava sozinha, voltou a se acariciar nos pés dela. Ela entrou na cozinha e achou a comida do gato, colocou água e ficou vendo o Rodolfo comer. Ele estava com fome.

Ela passou pelo namoradinho do Brasil roncando no sofá vermelho e foi para a cama. Se deitou e ficou lá, parada, sentindo o cheiro de homem nos lençóis. Com um tempo o Rodolfo veio também e se enrodilhou. Ela ficou acordada até o dia amanhecer.

Anunciando o dia que surgia, o bebum da véspera era o ressacado de hoje. Vomitou, mas como não era bom de mira, não acertou a bacia estrategicamente colocada ali. Acordou com uma dor de cabeça monstra, enjoado e meio verde. Ele tinha uns problemas para resolver na casa dele logo de manhã e o apartamento era um grande vomitódromo. O pior é que o dono do apê iria chegar hoje. Ela sem pensar muito, disse:

- Sem problemas, você vai resolver as suas coisas, deixa o apê comigo. Eu limpo tudo e deixo a chave em baixo do carpete.

Ele estava pouco se lixando em deixar uma desconhecida sozinha no apê do colega e mais interessado em se livrar dos problemas o mais rápido possível.

- Ok, agora limpa direito e vaza logo. Quando o cara chegar você não pode estar aqui.

Ele pegou uma camisa limpa no armário do cara e saiu sem dizer mais nada.

Ela limpou tudo. Lavou a louça. Jogou o lixo fora. Colocou mais comida para o gato. Ligou a vitrola. Abriu as janelas. Tomou um banho e esperou. Ela esperava o dono do Rodolfo, o dono do apê. Preferia não pensar em como explicar para ele a sua presença ali, não queria mentir, mas a verdade soaria estranha.

- Olha, seu amigo me trouxe aqui para dar uma, mas olha, gostei tanto do seu apê e do seu gato que resolvi ficar e te conhecer.

Como explicar essa loucura? Ela tinha se apaixonado a primeira vista por ele, sendo que nunca o tinha visto. E se ele não fosse como ela imaginava que fosse? E se ele não gostasse dela? E se ele chamasse a polícia? E o pior de tudo: se ele já tivesse alguém?

Ela pegou o Rodolfo no colo, sentou no sofá vermelho, e esperou o amor da sua vida chegar em casa.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Leveza

Saltos virados no chão a beira da cama de um motel. Lençóis úmidos de suor e saliva, incontestável mistura humana. Ele se permite descansar três minutos antes de tomar banho e despachar o lindo pedaço de carne de vinte anos que está semi desfalecido ao seu lado. A partir do momento em que se levanta da cama para ir ao banheiro seus passos não o distanciam apenas fisicamente. Quando caminha quatro passos ele já se esqueceu dela, sua mente agora vagueia para outro lugar. Seus pensamentos repousam no profundo deleite que o homem sente ao levar uma criatura mais nova para um motel. Nada dá mais poder a um homem do que convencer um jovem mulher a fazer sexo com ele, pagar a conta do motel e extrair de seu corpo o máximo que ela puder proporcionar.

Depois o gran finale, deixá-la. Sem grandes explicações, claro, e se possível fazendo-a se sentir culpada, afinal ele é um homem casado, pai de família com remorsos por ter cedido aos encantos de uma leviana. Grande prazer esse.

A verdade é que a leviana que cochila na cama não é primeira a corromper o honesto senhor casado. Ela é a vigésima sexta, mas acredita ser a primeira. Desde que o correto pai de família achou que envelhecia passou a se interessar pelas estagiárias, as namoradinhas do filho mais velho, as garotas de uma república estudantil perto da sua casa. Enfim, qualquer par de pernas que trouxesse com ela um sopro da juventude que ele já havia perdido.

Essa ele encontrou no shopping, ele lhe pagou uma bebida enquanto ela estava sozinha numa mesa. Ela lhe falou muito sobre carência, ele lhe falou muito sobre a solidão, mesmo quando se tem alguém do lado. Explicou que era casado, mas que se sentia tão sozinho. Ele adorava fazer o papel do esposo solitário, com uma alma romântica. Achou que ela entendia perfeitamente a situação e até se sentia solidária. Solidária, gosta de dar ao próximo. Ele estava próximo. Já que ela era uma jovem universitária carente, começou a falar nas ligações do espírito. Quando encontramos alguém e parece que já o conhecemos há séculos. Quando acontece um encontro tão raro, nenhuma convenção social pode afastar essas duas pessoas.

Foram para um motel perto dali. Ela aceitou tudo muito bem, sair com um cara mais velho, casado, logo assim de cara, deve ser a coisa mais normal do mundo para essa coisinha jovem. A juventude e suas levezas... Isso é uma bênção!

O infiel com alma de ator de dramalhão mexicano desperta de seus deleites pela Lady Gaga que começa a cantar dentro da suíte do motel. Na realidade era o celular da pobre vítima que tocava. Ele achou que esse era o momento de entrar em cena o pobre marido arrependido.

- Hey, cara, como você tá? – A pobre vítima no telefone – Nada de importante, e você? Ai, jura? Ok, então. Beijos!

Antes que o nosso senhor abrisse a boca, a jovem pulou da cama e passou por ele em direção ao banheiro. Ele achou de bom tom esperar que ela acabasse de tomar banho para poder comunicar à garota que não pode mais ser, que essa história nunca daria certo, que ele lamenta não poder continuar, mas ela é jovem. Amante arrependido, perfeito, romântico com um quê de canalha. Perfeito.

Ela volta ao quarto já vestida com a calça jeans, procurando sua blusa pelo chão.

- É, querida, não sei como dizer, mas... – ele começa.

- Ah, escuta, tem como você me dar uma carona?

- Carona?

- É, meu namorado acabou de chegar na cidade e eu estou louca de saudades!

- Você tem namorado? Por que não me disse antes?

- Você não me perguntou! Eu estava esperando por ele no shopping e estava tão entediada. Você usa o mesmo perfume que ele, então eu resolvi aproveitar um pouquinho.

Ele se deixou ficar com a toalha na mão sentado na beira da cama. A juventude e suas levezas...

sábado, 1 de agosto de 2009

A doçura secreta do antagonista

O antagonista entra no boteco de esquina mais longe de casa possível. Olha para os lados, escolhe a mesa perto do banheiro. Automaticamente estende a mão para o paliteiro e tira de lá um palito de dentes com só uma das pontas afiadas. Grita ao dono do bar uma marca de cerveja ruim, daquelas que mesmo gelada tem gosto de cerveja choca. Quando a cerveja chega, enrolada num isopor com manchas de mofo, o antagonista resmunga um tiragosto. Diz que quer caldo de mocotó. O caldo não tem mocotó, é claro, mas em compensação ele possui tudo o que já passou pela cozinha. Toda uma família de formigas e suspeitas perninhas que dão uma crocância toda especial. Por cima, uma compacta e grossa camada de gordura, boiando no caldo frio. O antagonista tenta desgrudar o sal do fundo do saleiro, mas este se recusa a soltar, desiste e toma o caldo insosso. Estala os lábios com a cerveja. Entra uma mulher que vende panos de prato e, numa cantilena, diz que é para sustentar os quatro filhos pequenos e o marido que a nove anos sofreu um acidente no serviço e ficou paralisado da cintura para baixo. O antagonista faz pouco caso das verdadeiras rugas de desgaste e fome da mulher e pergunta o que o marido dela acha do fato de ter filhos pequenos quando ele está há nove anos sem poder mexer nada da cintura para baixo. Ela se surpreende e sai do bar gritando maldições ao antagonista que ri. Começa a ver as mocinhas que saem da academia, apertadas em calças de malha branca. Quando elas passam se rebolando e suando próximas a uma das portas do bar de esquina, o antagonista assovia um elogio de pouca classe, mas muito correto, porque elas gostam e acenam com suas toalhinhas. Ele ainda faz mais um comentário tipicamente cafajeste as sombras na calçada antes de olhar para o relógio “madeintaiwan” e suspirar dizendo que já estava atrasado para a bóia em casa, “senão a mulher fica reclamando e perguntando onde o vivente anda, e aí já viu, é só o pé que ela queria para abrir o bocão e a gente fica mais sujo que pau de galinheiro”. Tirou, com um fungado, do fundo do bolso da frente umas notas sujas e amassadas. Reclamou do preço do cerveja, “que esta droga só faz subir, daqui a pouco tem que beber água da torneira e achando bom”, e disse que o caldinho tava uma delícia. Quis o troco num cigarro, recebeu um falsificado, e enrolou a língua para dizer o nome estrangeiro da marca. Concluiu que era coisa fina e saiu saboreando seu cigarro como se fosse um charuto cubano legítimo. Parou baforando seu cigarro na porta do bar e olhou para trás se despedindo temporariamente, na próxima sexta estaria de volta. Sai descendo a rua, equilibrando o cigarro no mesmo lugar onde o palito de dente ficou pendurando antes. Olhou para trás mais uma vez, se despedindo do bairro que começou como conjunto habitacional. Cospe o cigarro fora e pega um ônibus para o centro da cidade. Desce depois de vinte minutos e se encaminha para um bom carro prata, que custou uma boa quantia de dinheiro, e sente automaticamente o peso da responsabilidade se enganchar em seus ombros. Entra no carro e volta para o confortável e muito caro apartamento quatro quartos sendo três suítes, antes que a esposa, com o adorável casal de filhos, chegue do curso de inglês. Entra em casa como um arrombador e sobe diretamente para o quarto do casal decorado por um brilhante decorador com enorme sucesso na Europa. Tira as suas roupas de operário e as joga dentro do cofre escondido do closet. Toma um banho e coloca uma camiseta básica de grife e calça jeans com lavagem desbotada que custou um salário mínino. Desce para a sala no momento em que a mulher balançando os cabelos recém saídos de um importado método de rejuvenescimento capilar. Ele a abraça e começa a cena inicial da novela onde é o protagonista.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Love me tender

"Love me tender

Love me sweet

Never let me go

You have made

My life complete

And I love you so"

Seu amor não estava mais lá para me proteger. Acontecesse o que acontecesse, eu sabia, seu amor estava lá. Forte e imutável. Me fazendo seguir meu caminho, forte e imutável. Agora, sem seu amor, eu teria que ser forte por mim mesma. Então eu tive que crescer e desse crescimento eu me transformei numa mulher. De todas as coisas boas que você fez por mim, deixar de me amar foi a que mais me fez bem. Agora sou livre para errar, para me insubordinar, para transformar radicalmente meus conceitos. Não ser mais amada me liberta para ser uma pessoa pior. E sendo essa pessoa que você não gostaria que eu fosse, eu cresço e me fortaleço. Vou errar, vou sofrer, vou crescer, e quando eu estiver pronta, sei que você vai me amar outra vez.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Na areia branca existem piolas

- Para onde?
- Para a praia.


Amanhece no Centro Histórico. Decido ver esse sol terminar de nascer na praia. Tiro minhas plataformas douradas. Termino de soltar meu cabelo duro de laquê. Limpo o resto de maquiagem que ainda tenho no rosto. O cansaço e o delineador preto aumentam minha cara de cansaço, de velhice, de doença. Estou doente. Desço do táxi. Na praia só a galera “saúde”. Caminhando, correndo, se alongando, enfiados em cotons se exercitando de cinco da matina. Quando voltarem para casa vão tomar iogurte com fibras e ricota fresca, aposto que vão. Assim que eu vir mais esse dia amanhecer voltarei para minha casa e tomarei um café, vou comer um resto de arroz frio e dormir até as cinco da tarde. Sento na areia, um cheirinho de frio, de mar, de sal. O mar tem esse cheiro de manhã cedo, sal frio. Quanta saúde, quanta vitalidade, quanta coisa que eu não sou. Me senti subitamente deslocada, eu era uma mancha na areia branca da praia da “geração-saúde”. Fedendo a cigarro, a bebida, a perfume, a suor, a insônia. Quer saber? Deito na areia e ela cola no meu laquê poderoso. Tiro um cigarro e fico esperando a merda do amanhecer terminar. Quando o apago na areia fico com remorso. A praia parece tão pura esta manhã! Desencavo o toco de cigarro, mas percebo que não é a marca do meu cigarro, era outro toco enfiado na areia. Percebo as garrafas, os saquinhos de pipoca, as tampinhas, os cocos, as camisinhas. Olho para a galera da malhação na calçadinha, era como se eu soubesse um segredo deles. Volto a me deitar na areia, me sentindo em casa, e apago todos os meus tocos de cigarro na areia. A praia está suja. Eu também.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Eu queria dias de sol, mas veio a chuva e eu gostei

- Isso é chuva?

- Não, é o vento nos coqueiros.

- Ainda bem, já imaginou se fosse chuva? Como eu ia voltar para casa?

- Ah, você ficava por aqui mesmo... Até a chuva passar...

- Eu poderia?

- Claro!Você sabe que poderia ficar.

- Pena.

- Por quê?

- Queria que estivesse chovendo.


E então choveu a tarde toda, lavando certezas.
E então eu já não sabia se era chuva ou só o vento dos coqueiros.